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Abr 06
Numa paragem de autocarro um jovem vai escrevendo o que lhe vai na alma, observa atento aos movimentos das pessoas, os hábitos das criaturas, as formas como deambulam pela cidade…e escreve no seu livro…
 
                        “Nunca soubemos estar sozinhos, caminhamos mais tristes quando estamos sozinhos, são poucos os que tendem a ser loucos e escolhem a solidão como uma forma de ocupar o vazio. Desde cedo, ficamos presos a alguém, já nascemos presos a alguém, seja por um mero cordão ou um abraço, os sentimentos provocados pelos outros em nós são sempre mais fortes e indescritíveis…”
 
            A paragem tinha algumas cadeiras e estavam todas ocupadas, menos a do lado esquerdo do Ruben, jovem introspectivo e dedicado aos prazeres da observação e da escrita. Uma jovem senta-se nessa cadeira que até à hora se mantivera livre…
            Os transportes vão chegando e vão passando em passos largos os vultos que fazem de figurantes a esta história, ficam apenas os dois, sozinhos nos bancos da paragem, e embora estivessem espaço nenhum deles arredava pé do seu assento…
            A situação por si só caricata dava azo a alguns risos envergonhados por parte das duas bocas.
            Olham um para o outro…desviam o olhar, e voltam a cruza-lo, deixam finalmente escapar o sorriso contido que teimava em não se mostrar.
 
            - Parece que o mundo desapareceu e só ficámos nós…
            - Pois realmente, só nós é que temos tempo para esperar, chamo-me Ruben…
            - Muito prazer sou a Íris.
 
(fica então um silencio meio perturbador entre os dois, nenhum tinha um “desbloqueador” adequado para a situação, afinal eram apenas dois estranhos…
 
            - Que estás a escrever? Perguntou a pequena Íris
            - São coisas minhas, responde o Ruben e fecha o livro, queres ir andar por ai? E ver como está a noite?
            - Sim porque não, vamos, não estou com paciência para esperar…
 
            Caminham pela cidade, submersa na noite, vão falando de banalidades e vão-se conhecendo, param à porta de um Hotel e Íris faz-lhe um convite…
            - Queres subir? O dono é meu amigo, os quartos têm uma vista linda
 
Ruben não sabia bem o que fazer, mas a verdade é que a companhia estava bastante agradável, após pensar uns segundos resolver aceitar e subiu…
 
Antes de entrar no quarto Íris encosta Ruben à porta e começa a beijá-lo, a tocar-lhe a tomar posse do que Ruben julgava ser seu, mas que por estranho que parasse-se naquela noite fora de outra pessoa, de Íris, que fez do seu corpo um navio e deixou-se levar pelas ondas da noite…
No dia seguinte pela manhã Íris acorda Ruben com um beijo angelical e deixa correr um bom dia…
 
- Bom dia, flor do dia…
- Olá, pensei que tinha sonhado, mas afinal foi mesmo verdade, disse o ensonado Ruben, espreguiçando-se e deixando rolar os braços abraçando Íris.
- Temos tempo para o pequeno-almoço? Perguntou Ruben
- Tenho de continuar a trabalhar lindo, tu ontem foste excepção, passei toda a noite contigo, agora tenho de voltar…por falar nisso, são 130€
- Desculpa? Como assim?
- São 130€ ou esperavas que fosse de borla, temos de fazer pela vida bebé…
- Ruben estarreceu de imediato, para onde é que tinha ido a mulher com a qual se deitara na noite anterior…certamente não estava mais ali.
 
(Ruben não tinha dinheiro consigo, mas o seu relógio de marca deveria render cerca desse preço)
 
- Só tenho este relógio comigo…serve?
- Sim serve, é giro, pode ser, mas só desta vez, da próxima já sabes, dinheiro vivo!
 
            Ruben deixou-se novamente deambular pelas ruas claras da cidade, perguntava-se como tinha sido tão parvo, mas a verdade é que aquela noite continuava a complicar-lhe as ideias.
 
            Cinco dias mais tarde Ruben passa pela mesma paragem e volta a cruzar sorrisos com a bela Íris, volta a sentir-se atraído e volta a passar umas horas na sua companhia…
 
            - Qual é o valor para passar a vida inteira contigo? Perguntou Ruben
Íris sorri, faz-se uma festa no rosto e responde...
            - Talvez mil relógios daqueles!
 
 Desta vez Ruben deixou o mp3.
 
            Dias passados Íris volta a encontrar Ruben…
 
            - Hoje tenho dinheiro…estás livre?
Íris parecia abatida e triste, aparentava ter estado a chorar…
            - Não Ruben, hoje não
            - O que é que se passa, estives-te a chorar?
            - Venho agora do médico, o meu teste de HIV deu positivo…
Um silêncio fúnebre abraçou então os dois, Ruben não sabia bem o que fazer, embora tivessem sempre usado protecção nestas situações tudo se põe em causa…
 
- Está descansado, eu confirmo sempre se os preservativos rebentam…os que usamos nunca rebentaram.
 
Íris virou as costas e foi-se embora, Ruben encosta-se á parede senta-se no chão e põe as mãos sobre a cabeça…
 
Numa das noites em que vagueava pela cidade Ruben encontra Íris encostada a uma parede, em lágrimas, e completamente perdida, sentiu um misto de amor, pena, fracasso e talvez frustração e abraço-a com força…
 
            - Esta dor é forte de mais, a cruz é demasiado pesada para a conseguir transportar por muito tempo, hoje avisei a minha família, e meteram-me fora de casa…
 
            Ruben deita-a no seu colo, acaricia-lhe os cabelos, e faz com que adormeça…em seguida pegou-a ao colo e levou-a para sua casa que era ali perto.
            Deitou-a na sua cama e deu-lhe um pequeno beijo no pescoço que a fez estremecer novamente...ao de leve surpreendeu-a soltando os botões da camisa que Íris trazia…
 
            - Pára, eu não quero, não vou por ninguém em risco, muito menos tu
            - Mas eu quero-te, e quero-te como se fosse hoje a nossa primeira vez, quero-te sem subterfúgios e sem protecções…
            - Tu és louco? Qual é a parte da frase “eu sou seropositiva” que tu não percebes? Tu queres morrer como eu?
            - Vou ter de morrer um dia…que seja por um bom motivo.
            - HIV é um bom motivo?
            - Não, mas carregar contigo esta dor, estar ao teu lado e sofrer a tua mágoa, sentir o que sentes, e lutar contigo é o melhor que posso pedir à vida e à morte
            - Não posso deixar que isso aconteça…
            - Eu amo-te, deixa ser este o nosso pecado…
Íris deixa-se por fim levar…
 
 
            “ Viver com medo de lutar nunca foi viver, é ser refém das horas, fugir dos males dos outros como se estes não fossem também os nossos, nunca foi o mais certo, olhar de lado os que têm um mal nas suas veias não é mais do que uma mera ignorância, e como é inculto o meu povo, a idade é o maior peso que podemos trazer ás costas, faz-nos perder…inocência tenho pena desta gente, apressada no seu passo, que tem medo de tudo, e acaba por não viver…nada”
publicado por JF às 14:02

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