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Ago 06

     A noite, cheia de contradições e semblantes mascarados, em pinturas diversas, em sorrisos dispersos, onde os sentidos se vão perdendo. Já olharam a noite, da forma mais pura da sua forma? Quem não se perdeu, numa ou noutra noite, por esses trilhos estreitos, sem ter medo de não saber voltar para trás.
     Sou suspeito para falar da noite, eu divirto-me a olhar a luz da lua reflectida nas coisas, gosto das estrelas, dos candeeiros que iluminam as calçadas, dá-me prazer não saber o que vou encontrar nos becos mais escuros, agrada-me o cheiro da noite, gosto das luzes dos carros que passam depressa, e principalmente dos corpos, preparados para a noite, no seu trajo exclusivo, as pessoas em geral querem ser felizes numa ou noutra noite, produzem-se para a noite, sem ter medo de se perder.
     Nunca tive medo de perder tempo a olhar os outros, sempre aprendi muito com isso, com os gestos, com as atitudes, com o baloiçar dos corpos. Nesta noite a historia é um pouco diferente, e os personagens bem mais complexos, num pequeno bar à beira mar sinto o cheiro a maresia e oiço os sons que a noite me conduz, disperso-me nas luzes que piscam, e no corrupio de pessoas que andam de um lado para o outro, qualquer um destes personagens tinham características suficientes para me prender a atenção, seja o rapaz tímido que se encosta num dos cantos com seu copo, enquanto contempla a silhueta mais roliça do outro lado da pista, ou mesmo a menina do bar, ai a menina do bar, nunca passaram por uma pessoa e pensaram …“eu podia ser muito feliz contigo”, pois bem eu nesta noite, podia ser muito feliz com a menina do bar. Mas até aí nada me tinha chamado demasiado tempo a atenção, até as luzes denunciarem um casal até à vista perfeitamente normal, sentado numa mesa mais distante do meu posto de observação, com os seus cinquenta e poucos anos e trinta e tantos anos de vida conjugal, lá estavam eles, sentados num bar de praia, cultivando o que muitos perdem após a puberdade, o sentido de jovialidade. Só assim consigo explicar a permanência de dois seres num campo inimigo, sim inimigo, toda a gente sabe que onde os filhos passam a noite são locais impróprios à ingenuidade paternal, talvez porque a ideia do filho perfeito de desfaz quando o olham tórpido pelos cantos, com um copo meio vazio, e de olhos semicerrados, sem falar claro, da ideia preconcebida de filha exemplar e estudiosa que na noite é conhecida como “o furacão da margem sul”, se é certo que os nossos olhos só vêem o que querem ver também é uma certeza que olhos que não vêem coração que não sente.
       Ajusto-me mais perto daquele belíssimo exemplar de como são noventa porcento dos casamentos nos dias de hoje, ela de braços cruzados parece preocupada, provavelmente com o almoço familiar de domingo, ou quiçá as compras do mês, enquanto tenta não adormecer, difícil tarefa com estas musicas que os jovem ouvem, entendo o que passam os enviados especiais dos sistemas de informação quando dizem que não conseguiram dormir, com as bombas a cair consecutivamente ali por perto.
       Ele por sua vez acarinha um copo na sua mão direita, enquanto lança os olhos pelos corpos mais despidos das meninas de Bem, que hoje tiveram a amabilidade de trazer seus corpos e de partilharem o seu sentido estético connosco. Engraçado ver que o casal em toda uma noite não toca um olhar, um sorriso, ou mero toque inadvertido, sim é um belo par de jarras sem duvida, mas a questão não é tanto essa, o que me interrogou mesmo nesta noite foi até que ponto não nos transformaremos também nisso, num belo par de jarras, de que forma é que saberemos roubar o tempo sem deixar que ele nos tire o que fomos criando, os amigos, as memórias, as insónias e tudo aquilo que os anos deixam para trás.

continua...

publicado por JF às 15:23

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